Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Direito.
Área de concentração:
Direito e Justiça. Orientadora: Professora Doutora Misabel de Abreu Machado Derzi.
Resumo:
Nas complexas relações entre poder e direito, o sistema tributário nacional é parte de um desenho constitucional voltado à realização dos valores que fundam o Estado Democrático de Direito. Isso se reflete na afirmação de princípios e regras que limitam e condicionam o poder de tributar. Por meio de pesquisa teórica e bibliográfica de tipo jurídico-compreensivo e jurídicodogmático, a presente tese busca reconstruir a centralidade da finalidade nas contribuições como instrumento de realização de segurança jurídica e fins sociais constitucionalmente postos. Neste sentido, após tratar dos problemas tributários e sociais que cercam as contribuições e assentar sua natureza tributária, a pesquisa aprofunda-se na classificação das espécies tributárias e na estrutura da norma jurídico-tributária para propor uma reinterpretação da finalidade e sua realização por meio de efetiva atuação estatal como pressuposto cogente da incidência, elemento de conexão das normas de competência e de incidência, bem como das dimensões da hipótese e da consequência endonormativas. Considerando que a finalidade (e sua realização) funciona como limite ao poder de tributar (e de destruir), mas que isso não encerra o regime jurídico que condiciona a instituição e cobrança de contribuições da seguridade social, a pesquisa se dedica também aos demais elementos jurídico-constitucionais relevantes ao objeto. Palavras-chave: Estado Democrático de Direito; contribuições sociais; teoria da norma jurídica; limites ao poder de tributar.
Introdução:
A Seguridade Social tem sido alvo dos mais aprofundados estudos em todo o mundo, tanto nas reavaliações atuariais, com o aumento da expectativa de vida da população, quanto na implicação que essa Seguridade Social tem em dois fatores decisivos na atualidade: (i) a própria e já referida fiscalidade para fomentar o desenvolvimento – a tributação tradicional sobre a folha de salários tem sido questionada como um dos impeditivos de competitividade das empresas, em todos os países do mundo, assim, a Seguridade tem procurado fontes alternativas de custeio para que mantenha suas funções sociais primordiais e atinja os objetivos econômicos de uma tributação racional; e (ii) a inclusão social, pois neste mundo de exclusões sociais constantes, a globalização econômica e as enormes desigualdades sócio-econômicas buscam na Seguridade, no caráter assistencial do Estado, uma forma de amenizar tais diferenças ou, no mínimo, propiciar o valor mais caro e que deve ser o mais buscado pelos sistemas sociais (Direito, Economia, Sociologia etc.): a dignidade humana.
O Brasil se insere nesse contexto; primeiro, com um Texto Constitucional combatido, mas que desde a sua promulgação em 1988 mostrouse atualizado com as discussões, nesse domínio, que rondam o mundo desenvolvido nos dias atuais; depois, com a ausência de uma força normativa desse Texto Constitucional, sendo desviado de seus rumos originais e emendado a todo custo, com consequências graves para o Direito e para a Sociedade e, finalmente, com o país sufragado por uma carga fiscal elevada, de 2 distribuição questionável, com um plano econômico de duvidosa capacidade de gerar crescimento ou reduzir as desigualdades1 .
Com efeito, de Seguridade Social tem-se um conceito abrangente de múltiplas ações voltadas à garantia de mínimo acesso à saúde, previdência e assistência social. A Seguridade Social acautela os cidadãos dos riscos naturalmente surgidos da existência humana e da convivência social, ligando determinadas garantias e préstimos estatais a contingências que, verificadas, podem repercutir gravemente na qualidade de vida do indivíduo.
Submetida ao princípio da diversidade da base de financiamento (art. 194, inc. VI, da CR/88), a Seguridade Social é custeada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como por toda a sociedade, de forma direta ou indireta. Além das afetações orçamentárias promovidas pelos entes políticos, o custeio da Seguridade Social se dá principalmente pelos recursos hauridos com a imposição de tributos, sem prejuízo de outras receitas. A diversificação das fontes de custeio da Seguridade Social apresenta razão de ser. Além de desestimular a oneração demasiada de um setor econômico, pulveriza o risco de arrecadação aquém das expectativas, provocado por crises setoriais, garantindo um mínimo de estabilidade no pagamento dos benefícios sociais (direitos sociais), mesmo nos momentos mais difíceis da economia.
A Seguridade Social compreende o leque de ações estatais destinadas à garantia da assistência social, saúde e previdência social2 , direitos sociais de primeira grandeza que devem ser garantidos pelo Estado Democrático de Direito.
A primeira referência feita pela Constituição da República de 1988 sobre a Seguridade Social se deu em seu art. 22, XXIII, que adjudicou à União Federal a competência exclusiva para legislar sobre a matéria, não cabendo, portanto, aos Estados e Municípios a sua regência, ressalvada a competência concorrente em tema de previdência social (art. 24, XII, da CR/88). Assim é que, excepcionalmente, Estados e Municípios podem instituir contribuições para constituir fundo previdenciário aos seus servidores (art. 149, §1º, da CR/88).
O art. 165, §5º, III, do Texto Constitucional, por sua vez, cuidou de determinar que a Lei Orçamentária Anual compreenda, além do orçamento fiscal e do orçamento das empresas estatais, “o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público”.
A despeito de o princípio da unidade orçamentária recomendar, em um primeiro passo, a adoção de uma única peça legislativa veiculadora do orçamento, corporificada em um instrumento continente de todas as receitas e despesas incorridas pelo Estado, a necessidade de segmentação de determinados campos de ação estatal conduziu ao reconhecimento da possibilidade de instrumentos distintos para o controle financeiro de cada uma das referidas frentes de ação estatal3 .
Hoje, portanto, forte no art. 165, §5º, III, da Constituição, há uma peça orçamentária própria à Seguridade Social, mas ela, diferentemente de ser autônoma e bastante em si, deve se comunicar com as demais leis orçamentárias editadas pelo Estado Brasileiro, bem como se conformar às orientações políticas estabelecidas em Planos Econômicos, na Lei do Plano Plurianual e na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
A Constituição de 1988 dedicou um capítulo completo à Seguridade Social, iniciado no art. 194 e concluído no art. 204, sendo que o artigo introdutório foi o responsável por fixar a definição constitucional de Seguridade Social.4
O art. 195, de sua parte, pode ser entendido como um dos mais importantes dispositivos constitucionais sobre a matéria, senão o mais importante, tanto por sua extensão quanto pelos pontos sensíveis que são por ele tangidos.
O caput do artigo determina que a Seguridade Social deverá ser financiada5 pela sociedade como um todo, de forma direta e indireta, através de recursos da União e dos demais entes federados e, também, das contribuições sociais. Os incisos do mesmo art. 1956 apontam os tributos que podem ser cobrados para o financiamento da Seguridade Social, sem prejuízo da competência residual para a instituição de novas contribuições, assim como os parágrafos regulam a instituição de tais tributos. Este, o objeto principal do presente trabalho.
Existem, ainda, outras fontes de custeio para a Seguridade Social para além dos tributos vinculados. A lei n.º 8.212 (art. 27) prevê outras fontes de financiamento da Seguridade Social, tais como: (i) as multas; (ii) os valores recolhidos em serviços de arrecadação, fiscalização e cobrança; (iii) as receitas provenientes do fornecimento ou arredamento de bens ou, ainda, da prestação de serviços diversos; (iv) as demais receitas patrimoniais; (v) as doações, legados e outras receitas eventuais; (vi) 50% dos valores obtidos das vendas de propriedades rurais onde forem constatados cultivos de plantas psicotrópicas; (vii) 40% dos valores auferidos em leilões realizados pela Receita Federal do Brasil. Está previsto, ademais, que seguradoras que possuem o seguro obrigatório de danos pessoais provenientes de veículos automotores deverão repassar 50% do valor total do prêmio ao SUS.
No Sistema de Custeio definido pelo Texto Constitucional de 1988 para financiamento da Seguridade Social reside uma discussão aplicável a todo Sistema Tributário: o equilíbrio da tributação sobre consumo, salários e capital. E mais, nele se podem perceber toda a complexidade entre justiça tributária versus segurança jurídica, livre concorrência e proteção à iniciativa privada versus proteção de direitos sociais, crise do bem-estar causada pela guerra fiscal etc.
Apesar de um desenho constitucional arrojado no campo da seguridade social, tanto em relação ao sistema de custeio quanto no campo das amarras ao poder de tributar e aos aspectos sociais e valorativos da tributação, no plano fático prosperam os problemas.
De um lado, tem-se injustificada regressividade no campo da arrecadação (custeio), e até mesmo na esfera dos gastos públicos – o que ocorre, por exemplo, na atuação estatal previdenciária (cf., v.g., SILVEIRA, 2008); de outro, a pressão orçamentária exercida pelo endividamento público, associada a um federalismo roto, levam, a um só tempo, a uma hipertrofia tributária das contribuições e à tredestinações ou desvios dos recursos arrecadados para outros fins alheios ao Texto Constitucional.
Tal estado de coisas não se deu sem a cumplicidade, em maior ou menor medida, da jurisprudência dos tribunais e da literatura jurídica. É aí que reside o tema-problema da presente tese: investigar as amarras jurídicas ao poder distributivo de tributar via contribuições.
Particularmente, a pesquisa prévia apontou para o necessário desenvolvimento e aprofundamento teórico de duas frentes principais de controle do arbítrio tributário: primus, o real papel da finalidade nas contribuições 7 sociais; secundus, os limites para a competência da União de instituir novas contribuições.
O enfrentamento dos problemas colocados desdobrou-se na investigação de temas específicos de grande complexidade: (i) a relação entre poder e direito e a centralidade da dignidade da pessoa humana como estruturante do Estado Democrático de Direito, com o exame dos impactos de tal conjectura no âmbito tributário geral, e no âmbito específico de análise; (ii) a natureza tributária das contribuições e sua posição dentro da reflexão maior, feita pela doutrina nacional e pelos tribunais, sobre a classificação das espécies tributárias; (iii) o papel da finalidade na caracterização das contribuições, suas características e a distinção entre a finalidade na seara tributária e aquela afeta ao Direito Administrativo; (iv) a proposta de uma tese forte de compreensão da finalidade como amarra ou limite ao poder de tributar e verdadeiro pressuposto cogente da própria incidência tributária, com repercussões muito significativas no próprio debate acerca dos modelos de estrutura da norma jurídico-tributária (tão marcante na doutrina nacional), sem prejuízo do aspecto finalístico constante do mandamento; (v) o necessário desenvolvimento das consequências lógicas da tese forte da finalidade nas discussões sobre os diferentes tipos de tredestinação e o tratamento jurídico adequado a cada um deles; (vi) o revisitar crítico das normas de competência e o reafirmar dos limites à competênciapoder da União de instituir novos tributos pela via das contribuições.
O caminho percorrido enquadra-se metodologicamente na vertente jurídico-dogmática, por trabalhar com os elementos internos ao ordenamento jurídico “com vistas à compreensão das relações normativas nos vários campos do Direito com a avaliação das estruturas interiores ao ordenamento”, sem 8 deixar de pensar as relações normativas como parte do “mundo dos valores e relações da vida” (GUSTIN; DIAS, 2006, p.21).
Por envolver, principalmente, o reexame crítico da literatura jurídicotributária e de decisões judiciais relevantes com vistas a propor novas abordagens e soluções, a pesquisa assim se enquadra, quanto aos chamados tipos genéricos de investigações jurídicas: (i) tipo jurídico-descritivo e jurídicocompreensivo, por ter sido, em última instância, um procedimento analítico de decomposição de problemas afetos ao regime jurídico das contribuições; (ii) tipo jurídico-propositivo, em especial por apresentar novos modelos explicativos acerca da estrutura da norma jurídico-tributária e do papel da finalidade; (iii) tipo jurídico-comparativo, particularmente quando cuida da finalidade nos campos do Direito Tributário e do Direito Administrativo (cf. GUSTIN; DIAS, 2006, p.26-30).
Antes de finalizarmos o capítulo introdutório, cumpre-nos traçar duas advertências importantes. Em primeiro lugar, a tese cuida de temas que têm sido objeto de estudo desde o Mestrado do pesquisador, concluído quase dez anos atrás, e busca realizar a missão naturalmente animadora de superar a dissertação de então (LOBATO, 2004), da qual se beneficia enormemente como etapa prévia de amadurecimento acadêmico. O pesquisador nunca deixou de refletir sobre os temas aqui abordados, e não pretende deixar. Por isso, pode-se dizer dos estudos empreendidos como inacabados, porque permanentes.
Isso nos leva à segunda advertência: se por um lado a tese deve ser lida como um relatório do ponto atual de reflexões do seu autor, por outro, ela procura dar sua parcela de contribuição inovadora à doutrina tributária – tarefa difícil, mas adequada ao doutoramento. Se acaso logra realizar o intento 9 progressista anunciado, oxalá em alguma medida, o faz porque concebida de pé, sobre o ombro de gigantes do Direito Tributário nacional.